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Medo em forma de violência e sangue


Ao som "Minha Alma", O Rappa

Não passavam de 9 da manhã. Eu estava pronto pra sair quando me lembrei que deveria colocar alguns arquivos para baixar no PC; minhas séries favoritas esperavam por mim quando eu voltasse do trabalho.
De repente, na loja ao fundo de casa, ouço meu pai chamando por minha mãe. Nada diferente, pois sempre que ele precisa de algo, é a ela que recorre.

- Mãaae... o pai está chamando a senhora na oficina - digo displicentemente para o quarto ao lado.

De repente, um grito desesperado de meu pai chamando minha mãe. Não penso duas vezes: pulo da cadeira e corro até os fundos. Da porta da cozinha, vejo pela vidraça que dá para a loja dois homens com capacetes e jaquetas ameaçando meu pai; um deles estava armado (a partir de agora o relato pode ficar um pouco confuso, pois não tenho muita certeza de certas partes; logo, é um compilado do que vivi e do que meu pai disse que aconteceu).
Correndo em direção aos fundos da loja (que dá para a varanda de casa), pego ao lado da porta da cozinha um rodo. Já na porta, acerto o rodo no pescoço de um dos assaltantes, dou um grito (segundo meu pai eu disse "larga o meu pai") e pulo pra cima do outro, que estava segurando meu pai. Solto, meu pai parte pra cima deles comigo.
No meio daquela confusão, um dos assaltantes saiu correndo pela porta da frente; saltou por cima do balcão de atendimento e correu porta afora. O outro se desvencilhou de um empurrão e também saiu correndo. Meu pai ia atrás. Entre os gritos de susto e confusão da minha mãe e irmã no fundo da loja ("Meu Deus do céu, o que está acontecendo?!") e a tentativa de ajudar meu pai, vi o assaltante que ficou para trás se virar, apontar para o vidro escuro e atirar.
Não vi bem o que fiz; peguei meu pai pelas costas e puxei para trás. O tiro foi ensurdecedor. Minha mãe, apresentando uma coragem insana na hora, passou por mim e meu pai caídos no chão e foi até a porta da loja tentar identificar a placa do veículo da fuga dos assaltantes, alheia aos meus gritos de "Volta mãe que eles estão armados... volta!".
Olhei pra baixo; o braço esquerdo do meu pai sangrava. Entre o desespero e o medo, gritei algo como "pega um pano... o papai tá sangrando" e "liga pra polícia, liga pra polícia" enquanto fazia um torniquete no braço de meu pai para estancar o sangramento.
Como moramos no centro da cidade, a polícia chegou em 3 minutos após a ligação, armados de vários tipos de armas que nunca ouvi falar. Enquanto alguns dos oficiais pegaram meu pai e levaram correndo para o Pronto Socorro, outros pegaram outra viatura e tentaram refazer o percurso dos meliantes e outros ainda nos interrogavam para tentar entender o que houve.

- Quem estava na hora do ocorrido? - pergunta o Sargento para minha mãe.
- Era meu filho. - e aponta pra mim.
- Você conseguiu identificar alguma coisa nos assaltantes?
- Não... eles estavam de jaqueta preta, jeans escuros (eu acho) e capacetes pretos. - disse por minha vez.
- Não viu mais nada?
- Vi os olhos do que estava com a arma.

Depois de ter ido à delegacia tentar reconhecer o tipo de arma (era uma automática), tentar identificar um dos assaltantes pela parte do olhos, prestar depoimento, ligar para meus irmãos em outra cidade (quase tiveram um ataque do outro lado da linha - fizeram em 2 horas uma viagem que duraria 3:15 horas em condições normais), observar a perícia, ligar para meu amor (na época, para conseguir na voz um pouco de tranquilidade e equilíbrio que me faltava), visitar meu pai no hospital (graças a Deus nenhuma osso ou artéria foi atravessado, apenas o músculo), atender a todos os telefonemas e visitas em minha casa (notícia ruim chega por Sedex 10) e espantar os repórteres urubus que esperam uma grande notícia para ter o que falar a semana toda (cidade pequena é foda!), dentre outras coisas, desde esse dia não esqueci o olhar daquele rapaz!
Por várias noites eu sonhei e me vi na mira daquele olhar. Era um olhar jovem, acredito que de alguém bem mais novo que eu! Um olhar de raiva e rancor... um rancor que não era contra meu pai, contra mim ou contra alguém da minha família; diria até que era um olhar de medo! Um olhar de raiva de si mesmo!
Queria ter conhecido o dono desse olhar em outro instante, onde eu poderia acolher seu medo e dizer que daria tudo certo; apontar uma direção segura para suas atitudes além da criminalidade e da perversidade. Queria poder ajudar a enxergar esperança nos momentos de dor e conflito que ele infelizmente não soube compreender e passar com serenidade. Apenas queria estar perto...
Hoje não tenho mais medo ou raiva do que aconteceu. Apenas sinto piedade dos sujeitos! Não sei explicar porque, mas sei que é o melhor que posso fazer, pois a violência de um ato não justifica a violência, em qualquer fase, de um outro ato.
De minha parte, gostaria apenas de dizer para o mundo que apenas o amor, indistinto e pleno a qualquer pessoa, pode ser capaz de mudar uma situação como essa!
Mesmo com a recomendação de que não devemos reagir, por amor a meu pai eu arrisquei minha vida (segundo o Sargento, se eu não houvesse puxado meu pai, teria acertado direto no coração)! Mesmo com todos os motivos para me revoltar, por amor à criatura humana, perdoei de coração esses que fizeram mal à minha família.
Hoje, minha história tem um final feliz, diferente de tantas que já li no jornal. Com o amor, todas elas poderiam, podem e acredito que serão felizes!

(depois de meses do ocorrido, deixo este Diário Explicito como maneira de elaboração a situação e tentar esquecer a cena de confusão, as marcas pelo chão e o cheiro do sangue em minhas mãos)

Comentários

Que palavras tão intensas amigo, já sentia falta de ler as suas palavras e depois cheguei aqui e li esta história real, este episódio menos bom da sua vida com um detalhe que parece que estamos a viver aquele mesmo momento. Um Abraço
PauloSilva disse…
Meu amigo, após ler o teu comentário não sei como reagir. Se ficar pensativo, se agradecer! Gosto de escrever explícito mas de colocar nas entrelinhas todo o sentimento! É isso que muita gente do blog não faz, limita-se a mentir nos escritos, nos sentimentos o que soa a falsidade, vazio. Não pretendo dizer isso daqui, nem jogar alguma indirecta. Apenas quero explicar o porquê de escrever assim. Porque com tantos blogs maus, alguns terão de sobressair e dar realmente vontade de ler.
Aqui, é fácil de o fazer. As palavras estão bem cozinhadas e digerem-se facilmente pelo canto da boca. Fiquei surpreso com este texto, admito. Não achei que pudesse ficar com raiva para sempre, apenas com mágoa. Porque nunca sabemos aquilo que somos capazes até acontecer. Que reacção teríamos se? Não sabemos. Que aconteça então! Não me parece... Nem de perto!

Um grande abraço.
Anônimo disse…
Saudade...

Emerson
Anônimo disse…
gostei muito de vir aqui hoje! nem todas as pessoas têm esse dom de perdoar!

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